Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O Poeta Erótico

05.12.23

Fui logo repelido com o sinal de cristo
que fizeste quando me viste e eu te via
seguindo as orações das tuas mãos, a visão
da ondulação dos teus cabelos, o fulgor do
teu amor com que respiravas tuas preces
de joelhos, composta, vestida, senhoril
tão diferente das vezes que fizemos
o leito a alegre igreja, sagrado templo
secreto, onde o tempo corria com ímpeto
de chita
seguindo a presa que é o amanhã
que vem depois sem o sempre garantido

mas novamente fui multado e repelido
com o visto do teu sinal, desse cristo a que te dás
ao qual eu não me dá, que mal seguir-te os olhos
as linhas que me fazem arder o coração
o rasto que na poeira deixas ao entrar
na igreja que mais amas, que te quer por cortesia
e nada disto aconteceu, e nada disto se passou
arromba-se esta porta de madeira igual
ao meu amor ferido com ariete agudo
desse sinal que fazes com devoção. Ámen

 

24.11.23

Ela reduz a nada a luz da manhã
com seus braços nus,
com seus ombros firmes
cria rotinas diárias como a deligência dos pássaros
que de ramo em ramo, de rua em rua
juntam-se ao eterno cântico que celebra a vida

nem o espelho sabe o que ela pensa
nem ela sabe bem o que ela própria pensa
nem eu sei o que ela pensa
mas sei bem que ela sabe bem

lembra-me o tempo que
jogávamos às escondidas
e brincávamos à penumbra e
à sombra um do outro cujas
figuras geométricas
se projectavam nas paredes
como esqueletos dançando
atrás de biombos de luz febril

as minhas mãos
desenham no ar sinuosas curvas
como se o amor fosse mármore
e a dor e a verdade viessem
do vácuo num leve murmúrio

21.11.23

Junta-te a nós, doce criatura
acalenta-nos

abriram-se as bocas dos búzios
odoríferos num entrelaçar confuso
de pernas e braços e dedos
ó fervor no ritual etrusco, que mal existe
no acalentar das almas, no ruir dos corpos

a dor não está nos poemas dos poetas, mas à volta
seráfica sereia, e tu, vieste ver-nos, esperando pela vez
de receber as nossas vidas na tua boca morango e
cada vez mais cheira a búzios abertos neste quarto
cada vez é maior a noite quente e húmida
cada vez é maior o meu afecto fecundo

serão o meu pomar, carpe diem, colherei o fruto
o proibido é permitido, levem-me à boca
o vosso fruto suave donde brota a vida
largo o leme do barco, nem que Cila nos desfaça

rasgo o meu peito, no erotismo do
arco íris líquido do átrio azul profundo
ali amaram-se deuses, deixaram presença num
rasto colorido de gotículas fixas
quão maior o amor celeste, sonho que um dia
rasgarei o plasma das estrelas para abraçá-las
uma a uma, metamorfoseando-me numa estrela

onde estava a tua decência quando passaste por
aquela porta, biombo que separava as nossas vidas?
onde estavas quando o sol te procurou para
beijar-te esses ombros brancos decididos?
onde estávamos quando a vida por milagre
erótico nos sussurrou ao ouvido
porque não?

 

14.11.23

Parece herança escrita no sangue rubro
de fontes riquíssimas de minérios
do beijo que me dás, ao beijo que te dou.

a tua boca ávida ludibria o tempo férreo
com mãos algozes e homicidas das fortes
fundações do sagrado templo intangível

cerram-se pálpebras, palavras são inúteis
vôo fatídico de Ícaro antes do mergulho fatal
por aproximar-me tanto do sol, meu céu azul

a tua branca mão de violoncelista é habil
e belo o teu corpo de sinuoso violoncelo
fez brotar-me da terra uma oliveira firme

não há lua ou sol, só o brilho dos olhos
líquidos da saudade pura e cristalina da
montanha que és que escalei e me desfiz

16.10.23

Não desesperei que o verso aparecesse à tarde
igual à raríssima raposa à porta de entrada
da casa de campo há séculos em ruínas

nem convinha que sustesse a respiração
debaixo de água na turva imaginação
à procura de ninhos desconhecidos

não ofereças resistência ao delito ousado
de roubar ao vizinho um cacho de uvas
quando as metáforas escasseiam

revelarei segredos depois da lápide erguida
escrita na indiferença da chuva que
fustiga o refúgio do homem santo sem tecto.

incrível, guardei tudo, não esqueci nada
bebi rios inteiros de uma garrafa
aberta, derramando a vida sobre a morte

celebrou-se mais um ano
que é mais menos que mais
no entardecer de púrpura sonolência. Voltaste

caíste sobre mim como um véu diáfano
de seda nova que algum mercador tivesse
esquecido entre pedras e cardos num retrato

o teu amor agigantou-se, a sobreposição
da tua sombra, o eclipse do meu corpo
pela frescura do teu corpo, como soavam

sapos príncipes no lago à espera do beijo
aves trocistas no enlanguescer dos deuses
como me doía o riso de mim próprio

como eras bela e terrível se movesse
para fora da cama o meu corpo cansado
de tórrida arqueologia, onde floria a bunganvília

à entrada do templo verde que são teus olhos
aquosos da atmosfera húmida
dos beijos nascidos de um segredo.

não olhes ainda as horas, põe de lado o livro
de fenómenos terapeuticos que no tempo,
valerão menos que os versos que escrevemos juntos.

15.09.23

Criou-se anti matéria antes do tempo
varreram-se folhas secas com as sílabas
saídas das bocas de sábios
que se alimentam de teoremas

num abrir e fechar de lábios purpurinos
a pintura mestra misturava-se com as
figuras geométricas trocistas de pequenos
clarões de luz estampados na tua pele pálida

num quarto esquálido, vasto é o mundo
que universo estreito no v invertido.
desligo-me, solto-me, embato
no mármore frio rosado que és

convida-me antes ao fluxo e refluxo
sanguíneo no nascer crescente de um
poema por sair espontâneo, calo-me
clandestino ao sair desse transe
próximo da morte

a gardénia que amas
cresce viçosa à luz dos teus olhos
que infâmia é não podermos
assistir ao entardecer dos deuses

 

08.08.23

Estou deitado no poema que escrevi
desfibrilou-se o verso para que continuasse vivo
prolongo-me neste sossego nocturno bebendo sôfrego
o silêncio das sílabas coladas nos lábios secos, olhando
o teu corpo que flutua nos lençóis de luar e suor

nas noites quentes de vígilia, pensar é
a ventoinha ligada que agita o ar imóvel
traz-me a frescura do teu sorriso adormecido
no berço do passado.

Sonhei que teu corpo flutuava
ilha solitária no berço azul, sem rumo
como uma Hespéride, perdida na asa do Zéfiro
não falemos do que a Lua fez ao teu corpo
de luz luciferiana de mármore polido
falemos dos meus pensamentos absurdos que
desfilaram como um exército desfilando
por debaixo de um Arco de Triunfo sem triunfo

ó fome que me acabo cedo e tarde me inicio
desvinculado aos ponteiros do relógio cujo
tempo é o meu rufar cardíaco e ansioso de um dia
voltar a sentir o teu seio pousado no meu peito
e ouvir o teu piar de ave alegre de manhã,
como se chamasse a própria vida a viver dentro dela.

fico como o morcego que passa perto do candeeiro
para lá, para cá, no silêncio emudecido, à procura
do soneto escrito com os dedos na tua pele láctea
que, ao tocá-la, parece que foi tocada pela Via

dei abrigo na cabeça a todos os fantasmas
de sementes passadas e frutos futuros
desenhei gárgulas terríveis que afugentassem
a morte quando as nossas bocas se encontravam
tímidas pós discussão, sôfregas quando a
saudade é um quarto almofadado insalubre

nas noites dolorosas, colo-me ao chão
escuto o batimento cardíaco da terra e da vida
à espera que irrompa e rebente do meu coração
uma bunganvília luxuriante em verso purpúreo

que Dafne em fuga és tu, faço círculos concêntricos
à tua volta para amar-te e a tua resposta
são ramos secos e folhas quebradiças

sem o viço verde das folhas de louro, dos teus braços brancos
é quando a treva mais se adensa e a luz não penetra
tesouro sem mapa, lugar sem x
onde o meu suor escorre e a minha dor termina

 

04.08.23

de costas voltadas. De súbito
dá-se o eclipse do sol no meu coração sem fundo.
outrora intrépido, vazio agora sem esperança,
se te calas sou a criança perdida na floresta escura
à mercê de terríveis predadores que nos devoram
como as mandíbulas impiedosas, como a solidão

não me dividas em dois, nem cries o hábito
não é costume amar-te da mesma maneira
mas quando escureces o mundo que era claro e nítido
passo a ser só o sapo que saltava nas pedras
no lago de fogo vigiado pelas tuas coxas quentes.

Parti o relógio que contará os segundos
até que voltes, até que pares, odeias-me sempre
que é manhã, amas-me quando entardeço
não tenho de titubear porque o movimento do
universo é perverso o sufuciente para que me
encoste, esfolando a pele nas afiadas escarpas
da tua voz angelical de inverno rigoroso

 

05.07.23

tapa-se o pudor do peito com um pedaço de tecido
a nada reduzido, langor imperceptível
um V de vórtice invertido enrolou-me
na epilepsia crónica do mar azul

que ulisseia haver uma ilha em cada corpo, em
cada corpo a promessa de retorno, o orgulho
ferido exposto, convidativo, abrindo jardins
da Babilónia, cravando runas na memória

a maré encheu, apertaram-se toalhas o odor
de coco e fruta intoxicou-me como o sol a pique
ardi febril, enjaulado felino, um verso rugi
de tigre a isolar-se na selva branca embrutecido de tédio

há metáforas húmidas nas conchas e nos búzios
o mar também julga enrolar-se nas
pernas de Joana D'arc perfeita na praia
por olhares agudos e matemáticos, de visita de estudo

lentamente o bar abriu como a estrangeira loira
deitada na toalha vermelha lírio pálido adoecido
numa cama de sangue rubro, aterrada por
acidente num filme mudo de amor repetitivo

abriu os olhos, desenhou-se no ar um arco iris
austero, delimitando a fronteira entre olhar
para ver e olhar sem poder ver para lá do
horizonte, teleférico avariado na imaginação

abro os olhos, sigo as moléculas translúcidas
que deslizam no céu azul vibrantes como
crianças felizes em escorregas abrindo-me
no peito as amplas asas da dolorosa infância

mantenho-me no anonimato, eu que me chamo
Eugénio, não sou génio, faço parte desta praia
grão de areia, grão de nada que é tudo, plano
só num escaldante deserto sem vulto que passe

durmo a pensar que existo na quietude
dos jardins botânicos e bibliotecas públicas
vou a casa de alguém para ver-lhe os livros
levar-lhes versos crípticos que nos descodificam

Ó mar, meu médico de clínica geral, imenso
monarca azul, para lá do que é cósmico e infinito
virei ver-te quando os dias forem como
ventos favoráveis de mobilidade flexível

e maleável como este ginasta que se inverte
de peito cheio jovem vigoroso, arauto dos
abismos infernais, anunciando o patrocínio
da mudança irreversível, renovada, fully upgraded

quererei saber o ritmo furioso com que bates
nas rochas, com montanhas e planícies de água
o ar de sal fende-me as narinas finas
passeio nas horas incultas de ondas de espuma

26.06.23

Bebi-lhe a sua tristeza molhada e pura
enquanto lhe ardiam as lágrimas no rosto          
não aceitei que anoitecesse no quarto e
entornei-lhe pelo corpo nu um jarro de luz

não deixei que tacteasse o passado e caísse
embriagada de pranto, saltava de palavra em
palavra, de pedra em pedra, de beijo em beijo
ouvindo o ar que lhe saía e entrava nas narinas

escapava-lhe dos lábios húmidos o meu nome
soltando-se do seu rosto um pássaro de fogo
que se despenhou no meu mundo de espectros
incendiando-o, num abrir e fechar de vagina

esmagou-me o peito, apertava-me excitada e
enraivecida de súbito subia enlanguescida
soprando-me ao ouvido que não haveria
amanhã nem depois, só o jogo de morte súbita

aquele girassol abria-se e fechava-se
ao sol e à sombra que fazia dela própria
eu era a terra onde ela vinha esconder o passado
e o silêncio de ouro que lhe dourava o peito frio

escrevemos os dois histórias românticas de
simples enredos e fluídos onde sabíamos
que os heróis morreriam no fim numa casa
de luz acesa e de rosto colado à janela

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub